Coluna

Mellanie Fontes-Dutra

Mellanie Fontes-Dutra

Biomédica, Neurocientista, Pesquisadora (Neuro/Saúde Pública), Professora e Divulgadora Científica (@mellziland @redeanalise @todospelasvacianas). Fundadora do Instituto Mario Schenberg.

Isso pode ser sintoma da Covid longa

Imagem destacada escrito "long covid"

Ainda estamos em pandemia

A pandemia da covid-19 segue, e isso é a primeira coisa que precisa ser reconhecida e lembrada. Apesar de muitos alegarem que ela acabou, o que foi finalizado é o decreto de Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional (do inglês, PHEIC) pela Organização Mundial de Saúde, em 05/05/2023. O conceito de pandemia tem a ver com a circulação e disseminação de um agente infeccioso em diversos países, cruzando fronteiras entre continentes. Infelizmente, a covid-19 ainda segue sendo um problema global, assim como a covid longa e seus sintomas.

Quando conhecemos o SARS-CoV-2 e vimos o impacto que este vírus poderia trazer durante o curso da infecção, criamos estratégias para reduzir os riscos da doença e de seus agravos, como a vacinação, que segue sendo peça fundamental para o enfrentamento, e que deve ser atualizada à medida que novas versões do vírus surge, assim como já é feito com outras doenças, como a Influenza. Muito se investiu em buscar possibilidades de reposicionar medicamentos conhecidos, combinar antirretrovirais para auxiliar quem passa pela infecção e têm maior risco de agravar. Mas a covid-19 não é uma doença que preocupa somente durante a infecção: ela pode deixar sintomas duradouros, ou trazer riscos/levar ao surgimento de doenças em pessoas recuperadas (covid longa), e para isso, ainda há pouco investimento em pesquisa, e ainda menos políticas públicas.

Sintomas e doenças relacionadas à covid Longa

Estes sintomas e doenças estão agrupados sob o nome covid longa, ou sequelas pós-agudas da infecção por SARS-CoV-2 (PASC). Essa condição reúne uma série de comprometimentos de diferentes órgãos e tecidos, levando a sintomas associados ao sistema nervoso, sistema cardiovascular, trato gastrointestinal, entre outros. A covid longa pode afetar pessoas de todas as idades, até mesmo pessoas assintomáticas ou que não precisaram ser hospitalizadas para a covid-19 podem desenvolver, assim como pessoas vacinadas. Hoje, temos alguns estudos mostrando que a vacinação pode impactar positivamente, reduzindo os riscos da covid longa – reúno alguns achados aqui. Esses estudos reforçam que precisam de outros maiores para confirmar esses achados.

Nesse texto, gostaria de trazer algumas atualizações sobre os impactos na nossa primeira linha de defesa do sistema imunológico e no sistema nervoso, especialmente na névoa cerebral.

Adaptado e Traduzido de: Davis, H. et al., Nature Reviews Microbiology volume 21, pages 133–146 (2023)

Defesas prejudicadas

Segundo uma publicação na Science, em 2024, as alterações relacionadas ao sistema imunológico em pacientes com covid longa podem ser agrupadas em três domínios, que também podem estar presentes durante a infecção aguda

  1. Sinais de disfunção e exaustão imunológica;
  2. Ativação persistente de células imunológicas;
  3. Produção de anticorpos autoimunes.

Dentro dessas alterações, o sistema complemento, que faz parte da imunidade humoral inata, nossa primeira linha de defesa do organismo, pode ter um papel importante na covid longa. Entre seus muitos papéis, o complemento “marca” o vírus (opsonização), para que fique ainda mais “visível” para células imunológicas, bem como é capaz de destruí-lo. A inflamação persistente, mesmo depois da recuperação da infecção pelo vírus, pode estar desregulando esse sistema, por exemplo, gerando inflamações localizadas em tecidos. O que isso pode causar? Danos às células dos vasos sanguíneos, trazendo risco de tromboses, microcoágulos e perpetuação da inflamação no corpo. Um maior entendimento de como os elementos dessas vias estão envolvidos na covid longa pode ajudar no desenvolvimento de tratamentos para a condição.

Outro ponto importante é que muitas pessoas com covid longa experienciam sintomas parecidos com a Síndrome da Fadiga Crônica, e estudos têm mostrado que a reativação de vírus “adormecidos” (latentes)  no organismo podem ter relação com esses sintomas e sua gravidade.

Covid longa pode facilitar novas infecções?

Um dos impactos da covid longa é sobre a microbiota intestinal, um conjunto de microrganismos que reside no trato gastrointestinal, gerando um ecossistema que, quando em equilíbrio, traz benefícios para nós. No entanto, a covid longa pode desequilibrar esse ecossistema (levando à disbiose), propiciando o aumento de bactérias que causam doenças, incluindo espécies resistentes a antimicrobianos, trazendo riscos para o organismo para infecções por essas bactérias oportunistas.

Porém, considerando as evidências presentes na literatura, ainda não podemos bater o martelo sobre o quanto a covid-19 e suas sequelas podem afetar o sistema imunológico, a ponto de tornar o organismo mais suscetível a infecções por outros agentes infecciosos, o que algumas pessoas chamam de “débito imunológico”.. O que sabemos: não há evidências que deem suporte a este “débito imunológico”, ou que as medidas restritivas implementadas em fases emergenciais da pandemia (que segue em curso) causaram “danos” ao sistema imunológico. 

A inflamação na névoa cerebral e nos danos em outros tecidos

Cada vez mais, a literatura científica vem mostrando que as desregulações no sistema imunológico que levam a uma inflamação persistente podem ser um dos mecanismos por trás de várias alterações na covid longa. Recentemente, um estudo mostrou que a inflamação pode “afrouxar” uma barreira que seleciona o que entra e sai no sistema nervoso central, chamada de barreira hematoencefálica, levando ao comprometimento cognitivo e a “névoa cerebral” (falta de atenção, dificuldades na concentração, entre outros). A ativação anormal de linfócitos T, a desregulação de uma molécula sinalizadora, chamada interferon-gama, bem como as alterações na coagulação estão fortemente associadas à névoa cerebral e outros sintomas da covid longa.

Para discutir todos os danos diretos e indiretos que a neuroinflamação pode causar sobre o sistema nervoso, é necessário um outro texto dando enfoque a esse assunto – e teremos.

Reinfecções e os riscos de covid longa

Estudos vêm demonstrando que reinfecções podem levar à covid longa, bem como agravar essa condição, e quanto maior o número de reinfecções, maior é este risco. Portanto, ainda que a vacinação possa reduzir riscos da covid longa, são necessárias políticas públicas para reduzir o risco de exposição ao vírus, que é fator importante para essa condição e seu agravamento. O uso de máscaras em locais de risco para o contágio deveria ser parte de uma política pública fixa, pela experiência que seguimos vivenciando na covid-19, bem como uma maior qualidade do ar dentro de ambientes internos, com melhorias na ventilação natural e mecânica, como comentado pelo engenheiro Leonardo Cozac aqui. Estas medidas não farmacológicas inclusive nos ajudam a combater outros vírus respiratórios, como o vírus da Influenza, em que algumas linhagens estiveram praticamente ausentes no momento emergencial da pandemia, onde tínhamos mais medidas similares em curso.

O que estamos fazendo hoje é suficiente?

A resposta curta é não. Não temos ainda políticas públicas suficientes voltadas para essa condição, e ainda não temos estimativas nacionais do quanto a população é afetada por essa condição. E mesmo quando tivermos esses dados (o EPICOVID 2.0 está em andamento e prevê obter dados para covid longa), é possível que ainda tenhamos mais pessoas vivendo com covid longa sem saber. Os possíveis impactos futuros da covid longa estão muito bem descritos nessa leitura, que recomendo. Somado a tudo isso, é importante entendermos que, além das características do vírus, como sua alta transmissibilidade, temos também as características sociais, como nossa taxa de contatos entre pessoas. Isso tudo contribui para o aumento da oportunidade de transmissão. Se tivermos uma oportunidade de transmissão aumentada, teremos necessidade de mais e mais medidas para trabalhar na sua redução.

Recomendações de especialistas

Para lidar com a covid longa, precisamos de uma estratégia multifacetada, que atue:

  1. reduzindo o risco da exposição, e daí as medidas não farmacológicas, como uso de máscaras (PFF2, N95, por exemplo) são imprescindíveis, especialmente em locais de alto risco de contágio. Ainda, como comentamos no texto, políticas públicas voltadas para a qualidade do ar interno também são necessárias;
  2. investindo em pesquisa. Precisamos de um entendimento ainda maior da condição, seus mecanismos, biomarcadores, alvos terapêuticos para entender se podemos estudar reposição de medicamentos e/ou desenvolver medicamentos próprios para a covid longa;
  3. promovendo especialização dos profissionais de saúde sobre covid longa. Existe uma diversidade de sintomas que o paciente pode apresentar, e uma equipe multidisciplinar que olhe para todas essas manifestações e aja em conjunto é importante.
  4. criando centros especializados para atender pacientes com condições crônicas. É preciso ter centros de referência e excelência que possam acolher esses pacientes e poder oferecer um acompanhamento qualificado;
  5. gerando melhorias na comunicação pública. Precisamos que as autoridades de saúde falam ainda mais de covid longa, como reduzir riscos para essa condição, quais sintomas persistentes devemos ficar atentos após a infecção pela covid-19;
  6. analisando, a partir das evidências atuais, o quanto a vacinação (e seus reforços) pode reduzir a intensidade, duração e frequência de sintomas relacionados à covid longa após a condição estar presente. Se reunirmos evidências mais sólidas mostrando que os reforços podem atuar sobre isso, mesmo depois da condição estar presente, as vacinas também podem somar em mais essa política pública, sendo ofertadas de uma forma ainda mais ampla para a população, e não somente para grupos prioritários com risco para a doença aguda grave.

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